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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Carta a D


André Gorz, jornalista austríaco radicado na França, reconhecido por seus trabalhos nas áreas da filosofia e sociologia, surpreendeu o mundo ao escrever Carta a D. uma pungente declaração de amor a Dorine sua companheira por quase sessenta anos. Gorz começou a escrever essa carta quando descobriram a doença de Dorine. Além de relembrar como se conheceram, o texto é uma declaração de amor, mas não só. Gorz fala das dificuldades superadas graças à força da esposa, que enfrentou
 “com alegria um longo ano de penúrias” . Confessa que não conseguiu estar à altura, ficou deprimido: “Descobri que não se pode chegar à nada sem ‘relações’,  “Estava numa situação de fracasso com o agravamento irremediavel da doença de Dorine, os dois se suicidaram e seus corpos foram encontrados lada a lado em 24 de setembro de 2007.

Trecho de "Carta a D.



"Acabas de completar oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros, não pesas mais de quarenta e cinco quilos e continuas bela, elegante, desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos e te amo mais do que nunca.  De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher"

"Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro"

" O que me cativava é que você me dava acesso a outro mundo. Os valores que dominavam a minha infância não existiam nele. Esse mundo me encantava. Eu podia escapar ao entrar nele, sem obrigações nem pertencimento. Com você eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo. Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente minha."

"Eu gostava de sua fragilidade superada, admirava sua força frágil".

"Se você se une a alguém para a vida inteira, os dois estão pondo em comum sua vida e deixarão de fazer o que divide ou contraria a união. A construção do casal é um projeto comum aos dois, e vocês nunca terminarão de confirmá-lo, de adaptá-lo e de reorientá-lo em função das situações que forem mudando. Nós seremos o que fizermos juntos".

"Com você , eu podia deixar de férias a minha realidade. Você era o complemento de minha irrealizaçao do real, estando eu mesmo nele."

"Tive muitas dificuldades com o amor, pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras".

"É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância um com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou ela. Estamos aquém ou além da filosofia."

"Amar um escritor é amar que ele escreva."

"Eu admirava sua segurança, sua confiança no futuro, sua capacidade de captar os instantes de felicidade que se ofereciam."

"Você não precisava não precisava das ciências cognitivas para saber que, sem intuições ou afetos, não há nem inteligência, nem sentido."


"Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traître, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver."

"Na verdade, não explorei em profundidade aquilo a que me propunha ao escrever Le Traître. Para mim, ainda restam muitas questões a serem compreendidas e esclarecidas. Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro, um para o outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos."





"Falamos de política britânica, das diferentes correntes dentro do Partido Trabalhista. De imediato, você já sabia distinguir entre o que é acessório e o que é essencial. Diante de um problema complexo, a decisão a tomar sempre lhe parecia óbvia. Você tinha uma confiança inabalável na justeza dos seus julgamentos."




"De onde você tirava essa segurança? E, no entanto, você também teve pais separados; deixou-os cedo, um depois do outro; nos últimos anos da guerra, morou sozinha com Tabby, o seu gato, e dividia com ele a sua comida racionada. E, por fim, saiu do seu país para explorar outros mundos. Em que poderia lhe interessar um Austrian Jew sem um tostão?"

"Eu não entendia. Não sabia que ligações invisíveis se teciam entre nós. Você não gostava de falar do seu passado. Pouco a pouco, compreenderei que experiência fundadora nos tornou subitamente próximos um do outro."

"Nos encontramos de novo. Fomos dançar mais uma vez. Vimos juntos Le Diable au corps, com Gérard Philipe. Há no filme uma seqüência em que a heroína pede ao sommelier para trocar uma garrafa de vinho já aberta e bem consumida porque, segundo ela, dava para sentir o gosto da rolha. Tentamos reeditar essa manobra numa boate, e o sommelier, depois de verificar, contestou o diagnóstico. Diante de nossa insistência, ele nos mandou às favas, com muita determinação: "Nunca mais ponham os pés aqui!". Fiquei espantado com o seu sangue-frio e a sua sem-cerimônia. Pensei comigo mesmo: "Fomos feitos para nos entendermos". Depois da terceira ou quarta saída, eu afinal beijei você."

"Não tínhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura."

"Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro."

"Durante as semanas que se seguiram, nos reencontramos quase todas as noites. Você dividiu comigo o velho sofazinho afundado que me servia de cama. Ele tinha apenas sessenta centímetros de largura, e nós dormíamos apertados, um contra o outro. Além do sofazinho, meu quarto só tinha uma estante de livros feita de tábuas e tijolos, uma mesa enorme, atulhada de papéis, uma cadeira e um fogareiro. Você não se espantava com o meu cenobitismo. Também não me espantava que você o aceitasse."

"Antes de conhecê-la, eu nunca tinha passado mais de duas horas com uma moça sem ficar entediado e sem deixá-la saber que eu me sentia assim. O que me cativava é que você me dava acesso a outro mundo. Os valores que dominaram a minha infância não existiam nele."

"Esse mundo me encantava. Eu podia escapar ao entrar nele, sem obrigações nem pertencimento. Com você, eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo. Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar - a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente a minha. Falando com você em inglês, eu fazia minha a sua língua. Até hoje continuo a me dirigir a você em inglês, mesmo quando você responde em francês. O inglês, que eu conhecia principalmente por você e pelos livros, desde o início foi para mim uma língua particular que preservava a nossa intimidade contra a irrupção das normas sociais circundantes. Eu tinha a impressão de construir com você um mundo protegido e protetor."

 "Compreendi então que o espírito da seriedade e o respeito à autoridade seriam sempre estranhos a você."

"Mas nada disso dá conta da ligação invisível pela qual nós nos sentimos unidos desde o início. Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, mas eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança."

"A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós. Nós tínhamos de assumir a nossa autonomia, e eu descobriria em seguida que você estava muito mais preparada para isso do que eu."




"Na época, não procurei a resposta para tal questão na experiência que estava vivendo. Não descobri, como faço agora, qual era o alicerce do nosso amor. Nem que o fato de estar dolorosa e deliciosamente obcecado pela coincidência sempre prometida e evanescente do gosto que temos pelos nossos corpos"

"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “O mundo está vazio, não quero mais viver”, e desperto. Eu vigio a sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.""

Um comentário:

  1. Que lindo texto. Gostaria muito de vê-lo transformado em um filme. Isso é AMOR DE VERDADE ENTRE UM HOMEM E UMA MULHER.

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